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Colômbia usa militares em fronteira com Brasil, mas deixa cidade vulnerável na pandemia

Leticia, no lado colombiano, é dependente de Tabatinga, cidade brasileira suspeita de exportar coronavírus para o país vizinho

Por O Globo 14/05/2020 09h09
Colômbia usa militares em fronteira com Brasil, mas deixa cidade vulnerável na pandemia
Foto: HANDOUT / AFP

Letícia, na Colômbia, e Tabatinga, no Brasil, são na prática uma cidade só, de cerca de 100 mil habitantes. Não há rios ou morros que marquem uma fronteira e, se não fosse a linha imaginária no mapa, ela não existiria. Pelo menos até a pandemia da Covid-19 avançar floresta amazônica adentro. Agora, são os militares nas ruas no lado colombiano que tentam demarcar a divisa entre dois países com políticas diferentes para combater a doença.

A decisão do presidente Iván Duque de colocar soldados para regular a entrada e saída de pessoas da cidade mais ao sul do território da Colômbia gerou críticas por parte da população local, por ignorar a dependência dos colombianos em relação à vizinha brasileira. Leticianos cruzam a fronteira atrás de serviços médicos e trabalho. Agora, correm o risco de ficarem isolados da principal cidade da região.

- Tabatinga, economicamente, é a cidade que sustenta o comércio por lá. O fechamento da fronteira deixará o município de Letícia mais vulnerável, inclusive a uma crise alimentar, devido às restrições comerciais e de abastecimento de mercados com o fechamento. A população de Letícia já reagiu à medida, acusando o governo federal colombiano de desconhecimento das dinâmicas sociais e econômicas locais - afirmou Lycia Brasil, pesquisadora do Instituto Igarapé.

Para as lideranças de Leticia, o ideal seria uma estratégia conjunta entre os governos colombiano, brasileiro e peruano -  o distrito de Santa Rosa de Yavari, já no território do Peru, também faz fronteira com as cidades - para o combate à Covid-19 na região. Sem uma decisão compartilhada pelos vizinhos, Duque tomou a iniciativa e se colocou em uma encruzilhada.

O controle das fronteiras terrestres não contempla o grande fluxo de pessoas que vão de uma cidade a outra de barco, pelo rio Amazonas. Além disso, deixa os pacientes de Covid-19 de Leticia ainda mais dependentes do frágil sistema de saúde do lado colombiano. De acordo com dados oficiais, a cidade possui apenas dois hospitais, somando 58 leitos, 14 unidades semi-intensivas e nenhuma UTI disponível. O quadro se agravou ainda mais depois que 30 médicos da cidade pediram demissão no último dia 20. Antes de saírem, eles reclamaram da falta de equipamentos de proteção individual e de treinamento para lidar com os pacientes vítimas do novo coronavírus.

- Segundo estimativas do Instituto Nacional de saúde da Colombia, mais de 480 pessoas precisarão de atendimento em UTI nos próximos 30 dias - assinalou Lycia.

Os números atuais já são preocupantes. O estado colombiano do Amazonas, cuja capital é Leticia, apresenta a maior taxa de infecção per capita do país: 94 casos para um grupo de dez mil habitantes, de acordo com as autoridades de saúde locais. Com 79 mil habitantes, Amazonas da Colômbia registra 743 casos e 26 mortes causadas pela Covid-19, conforme o levantamento oficial mais recente. Já a cidade de Tabatinga, cuja população é de 66 mil, soma 329 pessoas infectadas e 38 óbitos confirmados. Para Elizabeth Dickinson, analista da International Crisis Group, os números elevados no lado colombiano sinalizam o tamanho da epidemia no vizinho brasileiro.

- O estado da fronteira colombiana no Amazonas tem a maior taxa de infecção per capita no país, refletindo os crescentes riscos de transbordamento da epidemia no Brasil. As autoridades estão extremamente preocupadas com essa fronteira porque o Amazonas está não está equipado para lidar com um surto - explicou.

 

Política brasileira para pandemia preocupa

Segundo Elizabeth, o que acontece em Letícia ameaça a política nacional da Colômbia para combater a Covid-19, uma vez que os casos do novo coronavírus cidade podem gerar uma nova onda no país:

- Como vimos em surtos em outras partes do mundo, um aglomerado de Covid-19 não fica parado, mesmo uma área relativamente remota como o Amazonas. Então, efetivamente, o que está acontecendo ao longo desta fronteira é um risco para toda a Colômbia.

Para completar, as autoridades ainda precisam lidar com um surto da doença no sistema penitenciário de Leticia, onde 89 de 181 detentos já testaram positivo. A região é conhecida por ser um ponto importante para o tráfico internacional de drogas com origem na Colômbia. Com o fechamento da fronteira com Tabatinga, a cidade dependerá ainda mais da atenção da capital federal, Bogotá. O histórico sentimento de abandono faz com que Leticia veja com descrença qualquer promessa de ajuda. Para o governo de Iván Duque, só resta mesmo prometer e se preocupar com o avanço da doença no lado brasileiro.

- A política brasileira para a pandemia preocupa, sobretudo na região amazônica. Atualmente, ela é a quarta mais afetada e enfrenta uma série de problemas adicionais da pandemia, como a infecção dos povos indígenas, da população carcerária e a falta de estrutura para atendimento no sistema de saúde pública. Como a situação do estado brasileiro do Amazonas vem se deteriorando rapidamente, o Brasil já é o sexto país com mais pessoas infectadas e não há uma política coordenada pelo governo federal no combate à pandemia no local, o governo colombiano, decidiu fechar as fronteiras terrestres com o Brasil e Peru - resumiu Lycia Brasil.