Política
Governo dos EUA planeja investigar interesse chinês pelo agro brasileiro
Congresso americano vai encomendar relatório de inteligência sobre as relações entre os dois países; Brasil nunca havia sido citado em projetos de lei do tipo

O governo dos Estados Unidos investigará o interesse chinês pelo agronegócio brasileiro, segundo o projeto de lei orçamentário anual para ações de inteligência que está em análise no Senado americano. Os parlamentares demonstram preocupação com os investimentos da segunda maior economia do mundo em solo brasileiro e a aproximação de autoridades chinesas com o Brasil.
A informação está na Intelligence Authorization Act, a legislação anual para financiamento de órgãos de inteligência dos EUA, como a Agência Central de Inteligência (CIA) e a Agência de Segurança Nacional (NSA). A lei, prevista para o ano fiscal 2026 - que para o governo americano começa em 1º de outubro de 2025 -, menciona o Brasil em duas páginas em capítulo sobre a China. O projeto de lei, de 280 páginas, trata principalmente da destinação de recursos para órgãos de inteligência e para o combate a ameaças à segurança nacional dos EUA.
A investigação sobre as conexões chinesas com o agronegócio brasileiro ocorrerá em meio à guerra comercial entre EUA e China. Em teoria, o resultado da análise de inteligência pode ser usado para definir a visão do Congresso americano sobre a agricultura brasileira, abastecendo os parlamentares com informações não disponíveis por vias tradicionais.
Segundo o projeto de lei, que a Comissão de Inteligência do Senado dos EUA aprovou em 15 de julho, a diretora nacional de inteligência, Tulsi Gabbard, deverá elaborar “avaliação e relatório sobre investimentos da República Popular da China no setor agrícola do Brasil” após consultas com o secretário de Estado, Marco Rubio, e a secretária de Agricultura, Brooke Rollins. O prazo para a produção do relatório é de até 90 dias após a sanção presidencial.
Se a versão atual do projeto for sancionada, Gabbard e equipe deverão avaliar “o nível de envolvimento do presidente Xi Jinping - ou por ele ordenado - com autoridades brasileiras, com foco no setor agrícola do Brasil”. O relatório também incluiria análise sobre “o nível de envolvimento do governo da República Popular da China com o setor agrícola do Brasil” e “as intenções estratégicas do possível envolvimento do presidente Xi, ou por ele ordenado, para investimento no setor agrícola do Brasil”.
Ainda segundo o projeto, os órgãos de inteligência americanos também deverão investigar “o número de entidades com sede na China ou de propriedade do país com investimentos no setor agrícola do Brasil, incluindo joint ventures com empresas brasileiras”. Por fim, o relatório deverá listar “os impactos sobre a cadeia de suprimentos, o mercado global e a segurança alimentar gerados por investimentos ou pelo controle do setor agrícola brasileiro pela China”.
Terras agrícolas
O relatório deverá abranger dados sobre infraestrutura física, produção de energia e terras agrícolas no Brasil. O projeto de lei não detalha quais métodos as agências de inteligência dos EUA utilizariam na investigação.
A análise, que poderia incluir um anexo confidencial, será apresentada às comissões de inteligência do Congresso dos Estados Unidos até 90 dias depois de o projeto virar lei.
O senador republicano Tom Cotton, do Arkansas, é o relator do projeto de lei, que aguarda aprovação pelo plenário do Senado. Depois, ele passará por análise da Câmara dos Representantes antes de seguir para sanção do presidente Donald Trump. Em teoria, a tramitação não deveria demorar mais de dois meses porque a lei precisaria estar em vigor antes do início do ano fiscal 2026, em 1º de outubro. Não havia previsão de data para votação do projeto de lei até o fechamento desta edição.
Cotton, um militar que serviu no Afeganistão e no Iraque, tem sido um ferrenho crítico da crescente influência chinesa no mundo. Presidente da Comissão de Inteligência do Senado dos EUA, ele lançou neste ano o livro “Seven Things You Can’t Say About China” (“Sete coisas que não podemos dizer sobre a China”, em tradução livre), no qual argumenta que o gigante asiático busca ampliar sua influência sobre a cultura americana e também sua capacidade militar para rivalizar com os EUA.
“Quero agradecer aos meus colegas pelo trabalho incansável neste projeto de lei, que ajudará a manter os EUA mais seguros e tornar as agências de inteligência mais transparentes e eficientes”, escreveu Cotton em comunicado sobre o projeto de lei como um todo, sem mencionar o Brasil. “É uma satisfação a inclusão neste projeto de reformas necessárias e [medidas para] a reestruturação do Escritório do Diretor Nacional de Inteligência, restrições de viagens dentro dos Estados Unidos de diplomatas de países adversários e proteção de instalações da Comunidade de Inteligência com a adição de mais restrições para a aquisição de terrenos próximos, o que as protege contra ameaças criadas por drones”.
O senador conclui dizendo: “Este projeto de lei foi aprovado pelo comitê com apoio bipartidário, e eu espero que meus colegas o aprovem também no plenário”.
Adversários
Para os órgãos americanos de inteligência, a China é considerada um país “adversário” dos Estados Unidos, assim como Rússia, Irã, Coreia do Norte e Cuba. Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, também figura na lista.
Nas 280 páginas do projeto de lei, o Brasil é citado dez vezes. A menção ao país ainda não havia sido noticiada no Brasil nem no exterior. Há 77 menções à China no projeto de lei. Também há citações a Rússia (28), Irã (19), Coreia do Norte (6), Cuba (6) e Venezuela (1). Potências econômicas, membros importantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ou países geopoliticamente relevantes como Japão, Reino Unido, Índia, Alemanha, França, Itália, Canadá, Austrália, Arábia Saudita, Israel e Argentina não foram citados. A Europa é mencionada nove vezes, também em razão da preocupação com a influência chinesa no continente.
A aparição do Brasil no projeto de lei coincide com a decisão de Trump de aplicar tarifa de 50% às exportações brasileiras aos EUA, inclusive produtos agrícolas, que o presidente americano anunciou em 9 de julho e ratificou ontem. O Brasil recebeu a tarifa mais alta neste último lote de medidas.
Trump relacionou a tarifa diretamente ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro - que, segundo o americano, é tratado “injustamente” e é alvo de uma “caça às bruxas” - e à “censura” às empresas de redes sociais de seu país. Posteriormente, Trump disse que reservou tarifas desse nível a países com os quais os EUA “não têm se dado bem”. Em resposta à medida de Trump, 11 senadores democratas publicaram carta em 25 de julho expressando preocupação com a decisão de taxar o Brasil, uma medida que chamaram de “claro abuso de poder”.
A Comissão de Inteligência do Senado dos Estados Unidos que aprovou o projeto de lei é composta por nove republicanos e oito democratas - três dos quais assinaram a carta questionando a tarifa ao Brasil. O relativo equilíbrio de forças entre os dois partidos na comissão e a decisão quase unânime, com 15 votos favoráveis e dois contrários, sugere que o texto tem boas chances de passar no plenário do Senado na forma atual.
Diferentemente do que ocorre com a maioria das comissões legislativas nos EUA, as discussões da Comissão de Inteligência do Senado americano não costumam ser publicadas devido à natureza sensível das informações discutidas. Apesar disso, um relatório do Comitê de Inteligência do Senado abrangendo o período de 3 de janeiro de 2023 a 3 de janeiro de 2025 não menciona o agronegócio brasileiro. A ausência do Brasil nesse outro relatório sugere que a decisão de investigar o país foi decidida já sob o mandato de Trump, que tomou posse em 20 de janeiro de 2025.
Mesmo que o trecho que cita o Brasil seja suprimido na análise do plenário do Senado ou na Câmara dos Representantes, a mera menção ao país no projeto de lei é inédita. O Brasil nunca foi assunto em leis do tipo, segundo análise do Valor no site do Congresso americano, apesar de ter sido espionado em pelo menos duas ocasiões, segundo revelações do Wikileaks em 2013. A então presidente Dilma Rousseff e a Petrobras foram os alvos.
O Valor procurou a assessoria de imprensa do senador Tom Cotton, relator do projeto, mas não houve resposta até o fechamento desta edição. A embaixada da China no Brasil e o Itamaraty também foram procurados e não se manifestaram. (Colaborou Rafael Walendorff, de Brasília)
