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Érika Santos revela motivos que a levaram a escrever livro sobre crime da Braskem: 'é algo muito duro e cruel'

Em entrevista ao Jornal de Alagoas, escritora alagoana falou sobre processo criativo de novo livro 'Esconjuro', que foi inspirado em um sonho

Por *Maria Luiza 21/09/2025 09h09 - Atualizado em 21/09/2025 10h10
Érika Santos revela motivos que a levaram a escrever livro sobre crime da Braskem: 'é algo muito duro e cruel'
Escritora alagoana Érika Santos fala sobre o processo criativo de novo livro 'Esconjuro' - Foto: Renner Boldrino

Sob o selo Loitxa Lab, a escritora alagoana Érika Santos lança seu novo plaquete, "Esconjuro". O trabalho, que já está em pré-venda, é a continuação de uma trajetória poética marcada pela profunda conexão que a autora tem com a natureza, presente também em seus livros anteriores, Procurar o mar é exercício noturno (Penalux, 2022) e Flores Floresta (Trajes Lunares, 2024).

Em sua nova obra, a autora mergulha em uma das maiores feridas da capital alagoana: o afundamento de bairros de Maceió causado pelo desastre da Braskem. Nascido de um ímpeto pessoal e de um sonho, o texto explora o embate entre o capitalismo predatório e a força mística da natureza, questionando o que perdemos — e o que resiste — diante de mortes simbólicas e invisíveis.

Para entender como a sua formação em linguística e o lirismo da poesia se misturam para dar voz a essa tragédia, o Jornal de Alagoas conversou com a escritora. 

A seguir, Érika Santos fala sobre o processo de criação de "Esconjuro" e a importância da poesia como um ato de resistência e memória. Confira:

MARIA LUÍZA (ML) -
 Antes de falarmos sobre o lançamento, acredito que a poesia é o resultado de uma trajetória e de influências que vêm de vários lugares. Como a sua formação em linguística e sua pesquisa focada em análise do discurso dialoga com a sua poesia?

ÉRIKA SANTOS (ES) -
 A análise do discurso investiga os sentidos a partir de uma ótica socioeconômica, e isso me interessa muito nesse processo. Em contrapartida, acredito que o trabalho da poesia é também ir pelo lado oposto a essa perspectiva mais teórica, trabalhando a linguagem de outra maneira.

É um desafio grande, por exemplo, trazer lirismo para um crime como o da Braskem, que aconteceu aqui em Maceió. É algo muito duro e cruel. E desfazer um pouco essa crueldade através de uma estética, de um estilo linguístico, é um desafio enorme. A linguística me auxilia a pensar em como compor esses sentidos, trazendo uma semântica não tão dura, para tentar tornar o tema um pouco mais humano e possível. Muita gente, não à toa, nomeia isso nos jornais como "tragédia", mas acho que o trabalho da poesia é pensar como estamos nos lugares sociais.


ML - 
O release menciona que a inspiração para "Esconjuro" veio de imagens da Lagoa Mundaú e de um sonho. Poderia descrever a sensação de ver aquelas imagens e de acordar daquele sonho? Como a força desses momentos se traduziu na primeira versão do poema?

ES - 
Fiquei acompanhando as notícias sobre o crime da Braskem e, assim como eu, muita gente também ficou chocada. Principalmente, claro, as pessoas que viviam na região. Mas acredito que isso afete o consciente e o inconsciente coletivo da cidade de Maceió e da Lagoa inteira.

Essas imagens me atravessaram muito pela mídia, e o sonho que tive foi o resultado de muitas outras que eu já tinha visto. No dia em que sonhei, eu estava prestes a dormir, lendo uma notícia com imagens aéreas do rompimento da mina 18. Havia uma foto de cima que mostrava a extensão da lagoa, a mina e alguns territórios ao redor. Fiquei muito chocada porque as imagens que eu havia visto antes do afundamento mostravam árvores no solo, enquanto nesta, as árvores estavam afundadas.

Esse afundamento do solo foi um processo silencioso, e muita gente esperava uma explosão. No entanto, ele se mostrou como uma morte lenta, violenta na perspectiva lírica, pois não se podia pedir socorro. Isso aconteceu de forma morna e branda, mas ao mesmo tempo violenta, e a imagem me abalou muito.

Decidi que não veria mais imagens antes de dormir, pois estava com insônia. Fui para a cama, e no primeiro processo do sono, que é quando a gente começa a pensar em algumas coisas, eu acordei com aquele susto de que se está caindo. A imagem ficou colada na minha cabeça e a sensação do meu corpo era a de que eu estava caindo junto com o espaço. Perdi o sono, fiquei pensando naquilo, mas tentando esquecer para conseguir dormir. Eu fechava os olhos e via as imagens do jornal e outras. Fiquei nesse sono leve com as imagens me povoando e resolvi levantar para escrever.

Escrevi a primeira versão do poema de uma vez só e revisei pouquíssimas coisas depois, mais gramaticais. Acredito que o poema foi o resultado desse sonho e dessas imagens instaladas no meu inconsciente, que eram o resultado de todo esse processo violento. Para mim, a literatura é um lugar de provocação, e foi um desafio pensar em como escrever sobre isso, já que meu trabalho estilístico é muito lírico.

Pensar nessa violência sem descrevê-la e trazer a sua esfera silenciosa, violenta e dura para o poema foi um desafio enorme, mas a escrita me atravessou de forma muito rápida. Meu maior trabalho foi realocar essas imagens em um estilo que acessasse espaços que não temos acesso: ambientes profundos, aquáticos e terrosos, com várias camadas de terra e uma infinidade de vida que existia ali.

Essa morte se reverberou de dentro para fora, atingindo a comunidade, as pessoas, as famílias, os filhos e as gerações que, daqui a dez anos, talvez não se lembrem mais que ali existiam esses espaços.





ML - Uma vez que a principal inspiração é a Lagoa Mundaú e os bairros afetados pela Braskem, em que medida a cidade de Maceió é personagem no livro? E como você enxerga Esconjuro também como um ato de responsabilidade social ou ativismo ambiental?

ES - 
Sim, tanto em "Esconjuro" quanto nos meus dois livros anteriores, há uma forte relação com a natureza e seus mistérios. Essa é uma questão que me atravessa, pois a natureza me responde de uma maneira totalmente diferente do que estou acostumada em nossa sociedade e cultura.

Acredito que "Esconjuro" faz parte de um processo de ativismo cultural e ambiental, mas, sobretudo, de um ativismo que vai contra os moldes sociais do capitalismo. Penso que por trás de todos os males que parecem "naturais" existe a ação humana, impulsionada pelo modo de produção capitalista e, hoje, pelo neoliberalismo, que reduz tudo e a todos a pouco para manter o progresso em avanço.

A poesia pode não ser um ativismo direto e objetivo, mas a vejo como um espaço para brincar com essas relações. O público que lê esse tipo de livro, com certeza, não defende o capitalismo. Essa linguagem faz parte do processo de ativismo, pois é um público que encontra nesses sentidos uma forma de sentir esperança, de não desistir e de se manter lutando por aquilo em que acredita, sempre em oposição a esse modo de produção.

"Esconjuro" tem uma proposta ativista, assim como "Flores Floresta" e "Procurar o Mar é Exercício Noturno". No entanto, "Esconjuro" está mais fortemente arraigado nas bordas de Maceió, uma cidade que sofre muito com a relação do turismo e com o avanço do capitalismo. Sabemos que isso se manifesta em diversas formas de violência contra a natureza, e o livro, com certeza, faz parte desse ambiente político.


ML - 
O poema se move entre o "lamento", o "feitiço" e a "vingança pela própria força natural". Como você equilibra sentimentos tão distintos dentro de um mesmo texto? Existe um ponto em que o lamento se transforma em feitiço ou em desejo de vingança?

ES - 
Ao pensar em "lamento", a primeira coisa que me vem à mente é o ímpeto que me levou a escrever, resultado da tragédia causada pelo crime da Braskem. O lamento é o ponto de partida do poema, pois não há o que esconjurar se não há o que pôr para fora, o que desejar que se quebre ou se encerre. É lamentar a visão de espaços sendo apagados.

O "feitiço" aparece na relação com o segredo, com o estilo de escrita que não entrega ao leitor o que se quer dizer de forma explícita. Existe uma chave de leitura, que está ligada à história desses bairros. O texto não foi pensado apenas para a denúncia no presente, mas também para leitores de poesia do futuro, que precisarão acessar essa chave histórica para entender o poema. Não é um poema fácil, e eu não queria que fosse, pois o objetivo era criar uma relação entre o eu lírico e o leitor que envolvesse a mística da feitiçaria, o segredo e o enigma. O feitiço vem dessa tradição de mistério que perpassa várias místicas.

Já a "vingança" está relacionada ao ato de esconjurar, de fazer com que algo se encerre, deixe de habitar um espaço. Nesse sentido, o poema se torna um pedido à própria natureza, uma comunicação para que ela expulse as ações humanas e, especificamente, as do capitalismo, a fim de que isso não se repita. É um pedido honesto, sem direcionamento, para que a natureza, através da voz lírica, faça a sua vingança à sua maneira.

É assustador pensar em como a natureza, uma força tão poderosa como a Lagoa Mundaú, afetada e "assassinada" pela ação humana, permanece imóvel e silenciosa. A gente sabe que ela responde com a falta, pois as pessoas que vivem e se alimentam da lagoa estão sofrendo as consequências. A forma como isso retorna à humanidade não é a que esperamos. Essa é uma maneira de pedir à natureza para encerrar essa violência, mesmo que seja algo que nós, seres humanos, com nossa linguagem, não consigamos compreender ou acessar completamente.


ML -
 O texto de divulgação do livro fala sobre a memória da cidade e sobre "mortes simbólicas e invisíveis". Na sua visão, qual a importância de resgatar poeticamente a memória de um lugar que está sendo soterrado e esquecido por um desastre?

ES -
 Não só o desastre, mas também o bairro. As pessoas simplesmente esquecem do que aconteceu e passam por ali sem entender o que está ao redor. É crucial registrar isso. O livro é uma tecnologia muito sofisticada, servindo como suporte histórico.

A importância de registrar isso, para além de uma noção estética, é inquietar as pessoas no futuro para que elas tentem desvendar o que significa. Acredito que a poesia nos traz esse mistério e segredo, essa estilística do mistério, do divino, que cria um ambiente secreto. A leitura de um poema é sempre uma investigação.

A ideia de mexer com a memória é fazer com que os futuros leitores se perguntem sobre o que o poema fala. Entregar a chave dos sentidos do poema de forma fácil faria com que eles não procurassem outras fontes mais sólidas para assimilar os sentidos com o mundo.

Acredito que o poema tem a força de nos levar para os tempos passados, presentes e futuros. Mexer com a memória e com o segredo é dar trabalho ao leitor, e dar trabalho ao leitor é fazê-lo desvendar o mundo.

Minha intenção é que, ao ler "Esconjuro" e pensar sobre o que o poema fala, as pessoas busquem a história dos bairros que foram esvaziados e das pessoas que foram expulsas de suas casas. Que elas acessem a memória dos bairros, das espécies humanas e não humanas, e também dos mortos que ficaram ali. Estamos falando de um processo cultural inteiro que está sendo apagado aos poucos. E eu acho que tudo isso precisa ter um lugar. Se fizéssemos um livro de 500 páginas, não conseguiríamos arrumar um lugar para tudo isso, porque é muito apagamento de uma vez só.




ML -
 Uma última pergunta, sendo este seu terceiro trabalho, como você vê a evolução da sua escrita de "Procurar o mar é exercício noturno" e "Flores Floresta" para "Esconjuro"?

ES - 
No meu primeiro livro, meu trabalho ainda era um pouco tímido em relação a essa estética voltada para a natureza e para as questões ambientais. Em "Flores Floresta", comecei a pensar em uma unidade para essa estética que me acompanha, que me incomoda, que me faz admirar e me apaixona, e que também me deixa triste.

Em "Esconjuro", isso se materializa de uma forma muito mais sólida, pois parte de algo que nos afeta de perto. Quando falamos de questões ambientais, como a extinção de animais e rios ou a ocupação de terras indígenas, tratamos de um lugar mais distante. Mas, quando se trata de Maceió, isso se aproxima. Acho que por isso "Esconjuro" veio com essa força mais dura e pesada.

Com o processo de amadurecimento, os símbolos se tornam mais conscientes. A inquietação e a obsessão por alguma parte do mundo sempre me acompanharam, mas isso se intensificou com a escrita. Neste terceiro trabalho, essa relação com a natureza se mostra cada vez mais viva.

*Estagiária sob supervisão