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‘Cem Anos de Solidão’: Como a série fez adaptação tida como impossível e traduziu Gabo para a tela

Clássico do escritor colombiano Gabriel García Márquez virou minissérie de duas partes para a Netflix

Por Estadão 03/06/2025 16h04
‘Cem Anos de Solidão’: Como a série fez adaptação tida como impossível e traduziu Gabo para a tela
Marco Antonio González como José Arcadio Buendía e Susana Morales como Úrsula Iguaran na adaptação de 'Cem Anos de Solidão' | - Foto: Pablo Arellano /Netflix /Divulgação

Cem Anos de Solidão, obra clássica de Gabriel García Márquez, foi publicada há 58 anos, em 30 de maio de 1967. Foi apenas recentemente, porém, que chegou às telas a sua adaptação - iniciativa à qual o autor resistiu em vida.

O livro ganhou as telas em uma minissérie para a Netflix, cuja primeira parte estreou em dezembro do ano passado (a segunda, ainda em produção, não tem data para chegar). Foi a culminação de um esforço que atendeu às três exigências básicas da família do escritor: que a adaptação fosse em formato de série, que se passasse na Colômbia e que fosse falada em espanhol.

“As três coisas se cumpriram, e a família ficou muito satisfeita com o resultado”, disse Diego Ramirez, produtor da minissérie, durante participação no Rio2C, no Rio de Janeiro. As exigências, muito provavelmente, buscavam evitar o mesmo destino da adaptação de Amor nos Tempos de Cólera, falada em inglês e dirigida pelo britânico Mike Newell.

Obra inadaptável? Nem tanto


Cem Anos de Solidão foi, por anos, tida como uma obra impossível de adaptar, dada a complexidade do mundo fantástico construído por Gabo. No entanto, a equipe da série optou, deliberadamente, por não se prender a tal rótulo. “Como equipe criativa, não podíamos partir dessa postura, pois tínhamos a tarefa de fazer a adaptação”, disse Camila Brugés, roteirista da minissérie. “O que tentamos foi fazer as perguntas certas para decidir o que queríamos adaptar”.

De acordo com Camila, o maior desafio foi entender o que entraria na produção e o que teria que ficar de fora. A trama, afinal, acompanha várias gerações da família Buendía e o crescimento do povoado de Macondo, com toda sorte de acontecimentos - de amores proibidos a conflitos familiares e guerras.

“O que tínhamos que fazer era editar. Foi muito difícil deixar de lado momentos que são lindos nas páginas, mas que não cabiam na série porque tínhamos apenas 16 horas de tela”, contou, notando que “embora pareça muito, estávamos contando cem anos da história de uma família, da criação de um povo, um povo mítico, com suas próprias regras”.

A roteirista encarou o trabalho de levar o mundo fantástico de Macondo para as telas menos como uma adaptação e mais como uma tradução - palavra que adotou após um encontro com a herdeira dos editores de Cem Anos de Solidão na Espanha. “Ela disse que o trabalho [da série] era como uma tradução da obra ao japonês, ao polonês ou a qualquer outra língua, porque o tradutor não é alguém que só traduz ao pé da letra, mas alguém que usa o conhecimento dessa outra língua para reconstruir a obra e questionar o significado de cada frase e o porquê de usar a língua de uma maneira ou outra”.

Camila prosseguiu: “Nós, roteiristas adaptadores, temos que fazer exatamente esse trabalho de entender qual a linguagem de Gabo, qual a nossa, e comunicar o que está por baixo da obra”.

O processo foi longo, e começou com o trabalho do roteirista José Rivera, que por dois anos trabalhou para organizar a história de forma linear. “Foi uma decisão que tomaram com a Netflix, pensando que contá-la assim poderia ajudar o espectador a entrar na trama com mais facilidade”.

Foi aí que entraram em cena os outros quatro roteiristas que de fato escreveram os episódios: Camila, Natalia Santa, Albatros González e Maria Camila Aris, todos colombianos. Eles demoraram cerca de três anos e meio para escrever tudo, e ainda tiveram como missão garantir que a adaptação permanecesse autêntica - o que, confessou Camila, não foi particularmente difícil: “É impossível ‘descolombianar’ Cem Anos de Solidão, a história está muito ligada com as idiossincrasias colombianas e latino-americanas”.

A parte 2 e o Massacre das Bananeiras


A segunda parte da história, inclusive, retratará um momento inspirado em um triste acontecimento da história colombiana: o Massacre das Bananeiras. Na ocasião, em 1928, o exército colombiano abriu fogo contra trabalhadores da United Fruit Company na cidade de Aracataca, que faziam greve em favor de melhores condições de trabalho. O número exato de mortos nunca foi confirmado.

“Foi um momento que Gabo decidiu capturar, e nós pensamos muito em como contá-lo, porque ainda não houve uma recriação audiovisual, e muito menos a partir da ficção, do massacre”, lembrou Camila. “Fomos muito precisos na investigação histórica, para retratá-lo como deveria ser retratado - neste sentido, é um documento histórico”.

A primeira parte de Cem Anos de Solidão, com oito episódios, já está disponível na Netflix.