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Em Londres, a casa “black mirror” já existe

Empresa constrói mostra com inovações tecnológicas da Amazon, Heineken, Samsung, Siemens e Google, para reforçar a existência de uma casa conectada

Por EXAME 26/03/2018 14h02
Em Londres, a casa “black mirror” já existe

À primeira vista, a Casa do Futuro não parece muito diferente de uma casa qualquer. Mobília antiga e nova se misturam na sala, onde quadros e fotografias decoram as paredes e plantas crescem na divisão do cômodo com a cozinha, num jardim vertical. Futuro e passado estão presentes ali, mas a distância entre os dois é invisível na superfície.

Mas essa é uma casa que responde aos desejos do seu residente a partir de um simples comando de voz, seja para esquentar a água da chaleira para o chá, acender as luzes ou recomendar a melhor roupa para uma importante reunião de trabalho.

Quase tudo nessa casa de 186m² parece de fato acordado, do jardim automático que água as plantas ao refrigerador que faz as compras do supermercado. A tecnologia aqui é um facilitador, mas age nos bastidores, sem o residente notar o que alimenta a eficiência ao redor.

“Quando se pensa nos espaços do futuro, as pessoas têm essa imagem minimalista e de certo modo fria. Mas aqui buscamos criar um ambiente caloroso, caseiro, de conforto, com superfícies que as pessoas queiram tocar”, descreve Simon Gosling, futurista e curador da experiência, durante um tour com Exame. “Afinal, 2020 está apenas a dois anos daqui”, diz, referindo-se ao tempo para o qual a casa foi concebida.

Criada pela empresa inglesa de publicidade Unruly, parte das empresas do magnata da mídia Rupert Murdoch, o projeto reúne produtos de ponta de marcas como Amazon, Heineken, Samsung, Siemens e Google e oferece a visão de um futuro onde marcas resolverão problemas dos consumidores ao invés de oferecer-lhes comerciais na TV.

“A casa do futuro é sobre a publicidade do ambiente”, explica Gosling. “Ela envolve você, mas você não se dá conta disso. Você apenas sente.”

Voz: o próximo desafio
Uma das principais interfaces dentro da Casa do Futuro são as que obedecem a comandos de voz. Para Gosling, esse tipo de interface, já presente em nossos smartphones, é o que irá transformar o espaço doméstico nos próximos anos. “As casas não se tornarão conectadas de repente, num único dia. Ela será construída aos poucos, parte por parte. E o que irá impulsionar isso são as interfaces por voz”, diz.

O casamento entre tecnologia e voz tem uma longa história. O primeiro telefone foi inventado há mais de um século e faz quase 100 anos que os primeiros programas comerciais de rádio foram ao ar. Mas equipamentos inteligentes que sabem interpretar o que dizemos e são pró-ativos em suas respostas é uma nova fronteira tecnológica que estamos cruzando.

“Sistemas de voz têm estado conosco por anos, mas agora estamos falando a respeito disso de uma maneira diferente”, analisa Dominic Harrison, diretor de tendências globais para a consultoria inglesa Foresight Factory. “Não apenas porque os sistemas hoje são capazes de nos entender melhor, mas porque os dispositivos hoje estão conectados a uma poderosa tecnologia alimentada por inteligência artificial”, aponta.

“Alguns anos atrás você perguntaria a sua assistente de voz no telefone ‘onde eu posso comprar chocolate’ e a sua assistente virtual te recomendaria lojas próximas de você. Hoje, essa assistente pode te questionar se você realmente deveria comer chocolate nessa semana. Voz percorreu um longo caminho e está se tornando mais poderosa”, aponta o executivo.

O crescimento de dispositivos ativados por comandos de voz, como o Google Home ou a assistente pessoal Alexa, da Amazon – ambos ainda sem data de lançamento no Brasil -, aponta para um tempo em que as tarefas mundanas do dia a dia, inclusive nossas atividades de consumo, serão mediadas por máquinas alimentadas por inteligência artificial.

A transformação vem com desafios. Numa loja ou na internet, ao buscar um produto, o consumidor escolhe frente uma variedade de marcas, mas quando as compras de supermercado ou da farmácia passarem a ser feitas por comandos de voz, fabricantes de chocolate ou de xampu precisarão de uma estratégia clara para se diferenciarem nesse espaço, afirma Harrison.

“Há uma ameaça óbvia para marcas quando consumidores passarem a perguntar por produtos ao invés de nomes de empresas”, diz. Pesquisa da empresa com 5 mil pessoas na Grã-Bretanha em 2016 apontou que 29% das pessoas ouvidas já utilizam comandos de voz para se comunicar com dispositivos pessoais. A empresa projeta que, em 2025, esse número irá saltar para 38%.

“A internet não era capaz de criar relações calorosas com consumidores, mas isso vem mudando. Voz vem se posicionando como a próxima interface com a qual engajaremos e essa será a nossa próxima forma primária de comunicação [com dispositivos e marcas]”, prevê Harrison.

As assistentes pessoais virtuais, como são chamados os produtos de Google e Amazon, ainda têm penetração baixa, mostra um relatório recente da empresa GFK. Pouco mais de um a cada dez consumidores americanos possuem um dispositivo do gênero. Mas a presença dos produtos em 11% dos lares pesquisados apenas dois anos após serem lançados indica crescimento nos próximos anos, diz a companhia.

Uma estimativa da Gartner aponta que, em breve, a presença desses produtos nos lares pode passar da exceção à regra, com vendas que devem alcançar US$ 3,52 bilhões em 2021 – um salto comparado com a receita gerada em 2016, de US$ 720 milhões. “O ano de 2017 foi interessante para a casa conectada, com grandes marcas lançando produtos para esse espaço”, avalia Jessica Ekholm, vice-presidente de pesquisa para a Gartner UK.

Para a executiva, empresas que conseguirem operar dentro dos ecossistemas virtuais – como os desenhados por Google, Amazon, Apple e Microsoft – são as que devem ganhar escala. Ser a marca de cerveja que a assistente da Amazon irá pesquisar quando o consumidor despretensiosamente pedir “Alexa, compre algumas garrafas de cerveja para o final de semana”, pode fazer a diferença.

“Voz está se ficando cada vez mais prevalente e é uma boa ideia para empresas olhar em como usuários podem acessar seus serviços por meio de integração com as funcionalidades de assistentes pessoais virtuais”, aponta.

Black Mirror
O Espelho Oak, um dos protótipos presentes na Casa do Futuro, é um exemplo de como o espaço para a publicidade pode mudar radicalmente no futuro. Conectado ao telefone do usuário e de posse de sua agenda de compromissos para o dia, o espelho pode recomendar figurinos dependendo das atividades do dia, da previsão do tempo e até mesmo da importância social das pessoas com quem o residente deverá se encontrar ao longo do dia.

Como num episódio da série de televisão britânica Black Mirror, em que cada pessoa tem uma nota baseada nas interações com colegas, família e desconhecidos, o Espelho Oak busca o “status social” daqueles na agenda de compromisso e, além de recomendar figurinos do guarda-roupa, alerta o morador se suas roupas foram usadas em outra ocasião com a mesma pessoa – em seguida, oferece opções de compra.

Hoje ainda não temos um sistema de avaliação como os personagens de Black Mirror, “mas todo mundo tem uma conta no LinkedIn, com seus cargos e empresas”, explica Gosling. Conectado à rede social, o Espelho pode fazer inferências sobre o status social daqueles com quem o residente irá se encontrar.

O Espelho também pode logar todo o guarda-roupa do morador em um ambiente digital, desde que as roupas venham com tags específicas, que se comunicam via rádio-frequência com a máquina. De posse dessas informações, é possível experimentar virtualmente as peças e receber alertas sobre a necessidade de compras de roupa para eventos futuros.

“Se o Espelho nota que você tem uma viagem com atividades de hiking no final de semana, mas não há botas adequadas em seu guarda-roupa, ele pode te apresentar comerciais de produtos e marcas, dependendo dos seus gostos”, explica Gosling.

Marcas como a varejista de roupas britânica Asos já vendem mais em compras feitas pelo celular que por qualquer outro canal, segundo dados de 2017. A experiência com o Espelho Oak é apenas uma das que deverão transformar, de novo, a forma como empresas convertem vendas em diferentes ambientes.

Com tecnologias como realidade virtual e realidade aumentada, o desejo do consumidor de sentir e tocar produtos não ficará restrito ao ponto de venda e empresas precisarão criar soluções que permitam essa experimentação de onde o consumidor estiver – inclusive da sala de casa, diz Gosling. “Hoje tudo está relacionado a ideia de explorar, as pessoas querem experimentar algo antes de comprar. E a tecnologia irá permitir isso, de onde você estiver.”

Para decolar, tudo em um app
Apesar de estar crescendo, a adoção de soluções para casas conectadas ainda está distante de ser a regra, mostra pesquisa recente da Gartner. De acordo com o estudo, realizado com 10.000 pessoas de Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, apenas 10% das casas pesquisadas possuem soluções do tipo.

Para Ekholm, vice-presidente de pesquisa para a empresa, o principal motivo para a lentidão da entrada desses produtos nos lares é a fragmentação de dispositivos e soluções hoje no mercado e a falta de integração real entre produtos. Outras razões são preços altos e falta de compreensão sobre o que de fato traz valor para os usuários.

Para o futuro se tornar realidade, seria necessário que diferentes dispositivos, relacionados a segurança, energia, compras e entretenimento, pudessem ser comandados a partir de uma única interface. Mas enquanto o mercado evolui para esse ideal, disputas como a vista em 2017 entre Amazon Echo e o Google, que, por dois meses, bloqueou o acesso do Echo Show ao Youtube, exemplifica como a falta de integração real entre serviços afeta o usuário.

Mas estamos caminhando. Ekholm prevê que, já em 2018, tal integração será maior, impulsionada pelo licenciamento de tecnologias a plataformas de terceiros e um crescimento inédito de produtos para a casa alimentados por aprendizado de máquina. Ela também acredita que mais equipamentos obedientes a comandos de voz sejam colocados no mercado.

“A esperança”, diz Ekholm, “é que consumidores serão seduzidos pela conveniência oferecida pelos ecossistemas conectados que sigam o mote ‘um aplicativo – um ecossistema inteligente integrado’.”