Dosimetria tem cheiro de anistia, mas há algo mais atraente ainda por trás da armação
Manobra em curso pode desaguar em crise entre poderes e forçar 'solução previsível'
Após ser aprovado na 'calada da noite', às escondidas, sem um aviso sequer ao presidente Lula ou alguma autoridade do governo, o projeto que reduz as penas dos golpistas do 8 de Janeiro, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro, foi levado ao Senado pelo deputado Paulinho da Força, o relator na Câmara.
A princípio, o chamado PL da Dosimetria visa apenas corrigir 'excessos' contidos nas penalidades aplicadas pelo Supremo Tribunal aos envolvidos na fracassada trama de golpe de estado.
Mas a leitura que passou a ser feita, depois da votação na Câmara, indica que a Dosimetria não passa de um disfarce para esconder o real objetivo da proposta: a votação de uma anistia ampla, geral e irrestrita aos golpistas.
E isso ficou transparente quando o relator Paulinho da Força levou ao Senado o projeto aprovado pelos deputados. Ao recebe-lo, o relator designado, senador Espiridião Amin, do PP de Santa Catarina, adiantou abertamente que defende a anistia e deixou claro que o perdão será ponto de destaque no seu relatório.
Ou seja, trata-se de uma trama legislativa destinada a livrar a pele dos que participaram da armação golpista. Mas com uma diferença: ao contrário do que aconteceu na Câmara Baixa, não será tão fácil emplacar a proposta de anistia na Câmara Alta.
Percebendo a manobra, o senador Renan Calheiros, do MDB de Alagoas, prontamente denunciou o golpe em andamento afirmando que a proposta da anistia não será sequer uma emenda, pois já consta do próprio texto do relatório, em face do que conclamou o Senado a impedir o avanço do esquema rejeitando-o já na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Mais uma vez, parte do Congresso Nacional usa caminhos tortuosos e indevidos para atingir objetivos escusos, contrariando e desafiando o Supremo Tribunal. Tenta avançar com projeto de um perdão antecipado (precipitado é o termo mais correto) mesmo sem a Corte Suprema ter ainda concluído os processos contra os golpistas.
E o faz, veja só, sabendo que o próprio Judiciário poderá julgar a concessão da anistia inconstitucional, já que se trata de extinção de penas, portanto, matéria de competência exclusiva da Justiça.
Depois, os parlamentares mais assanhados gritarão que o Supremo 'usurpou atribuições' do Legislativo, buscando assim abrir mais uma desavença entre os Poderes. Aí - tendência mais que previsível - ficarão na expectativa de que o Planalto entre em ação e intervenha para acalmar os ânimos. Como? Isso mesmo, liberando bilhões de reais em emendas no ano das eleições, aliás como tem feito nesses tempos de pseudo presidencialismo.
Outra hipótese incluiria mais uma crise entre Congresso e governo. Como? Lula vetaria o PL originalmente dosimétrico, provocando a reação dos congressistas mais 'afoitos'. Para contornar a indisposição, lideranças parlamentares falariam em acordo e iriam até o presidente da República em busca de entendimento.
Na mesa de negociação, o cardápio de sempre, isto é, bilhões de reais em forma de emendas parlamentares. Pois não dá para crer que os deputados e senadores, os que agem como 'fiel da balança' nas votações, tenham realmente compromisso pra valer com Bolsonaro e seus seguidores golpistas.
Resta, porém, saber como reagirão os ministros do STF com relação ao projeto que simplesmente desmonta os julgamentos que condenaram os que atentaram contra as leis, os poderes e a democracia brasileira.


